segunda-feira, 19 de março de 2012

Revolução e consciência de classe no Egito

Tentativa de greve geral acabou frustrada por falta de adesão

Aldo Sauda
Especial para Caros Amigos


Revoluções em curso não são feitas apenas por momentos de glória. O dia 11 de fevereiro de 2012, data do aniversário da queda do presidente egípcio Hosni Mubarak, certamente não foi um deles. Movimentos de juventude, relembrando a greve geral que há um ano atrás derrubou o então ditador, decidiram investir todas as suas esperanças em uma nova paralisação da economia contra os remanescentes do antigo regime. Suas expectativa se assentavam, na prática, em uma mobilização semi-espontânea das massas operárias em torno de temas quase puramente políticos. Após muita expectativa, a greve se reduziu unicamente ao movimento estudantil.

O fato de que nenhum setor da classe trabalhadora chegou perto de parar surpreendeu até os mais cautelosos dos observadores. Em um país com um movimento operário em franco ascenso e uma forte politização nas ruas, o grau de apatia frente ao chamado desanimou boa parte dos ativistas egípcios. A derrota, porém, deixa importantes lições ao jovem movimento revolucionário do país.

Uma consciência em construção

Mohamad Said, dirigente do recém-fundado sindicato independente dos petroleiros de Alexandria, viajou por mais de 5 horas de trem para ser entrevistado. Trajando um terno verde oliva, claramente destacado para sua tarefa internacionalista, Mohamad carregava debaixo dos braços livros de sua própria autoria para presentear seus entrevistadores estrangeiros.

O tema do seu texto passa longe da luta de classes. Ele revela, de forma bastante pitoresca, o grau de consciência de classe da vanguarda do operariado egípcio. O sindicalista redigiu um livro a respeito dos desperdícios e gastos supérfluos na indústria de petróleo do país.

O assunto é preocupação central deste maquinista com formação técnica em contabilidade. “Nossa produção de riquezas é uma vergonha, se tivessemos mais controle e eficiência, o Egito seria um país muito mais rico”, afirmava. Com precisão de contador, Mohamad passa quase uma hora detalhando os problemas técnicos da indústria petroleira do país. Para ele, seu recém-fundado sindicato tem um papel central em propor métodos para elevar e melhor organizar a produção nacional. Em alguns momentos, fica difícil discernir se estamos diante de um militante sindical ou um gerente do Estado.

Uma nova conjuntura

Egito-Ano-greve-i2A queda de Mubarak, em boa parte produto da militância de homens e mulheres como Mohamad, abriu um novo momento na organização da classe trabalhadora egípcia. Junto com a derrubada do regime, a antiga lei sobre organização sindical, que proibia sindicatos independentes do Estado, foi rescindida pela junta militar que atualmente governa o país. Quatro meses depois da abolição da lei, sob pressão dos sindicalistas independentes, a antiga central sindical pelega, atrelada ao Ministério do Trabalho e o partido do governo, teve toda sua cúpula dirigente demitida.

A demissão da direção nacional da central governista, assim como a abolição da lei sindical, revelam o caráter incompleto da revolução no Egito. Enquanto a central pelega não possui mais uma direção política strictus sensus, o governo em momento algum anunciou a sua abolição. Na prática, a entidade foi colocada na geladeira, podendo ser tirada de lá quando o governo acreditar ser conveniente.

A própria derrubada da antiga lei sindical carrega uma dualidade. Se por um lado o fim da odiada lei atende a uma revindicação histórica da classe trabalhadora, ao mesmo tempo o Egito se encontra hoje sem uma legislação específica para reger o direito de organização sindical.

Tal limbo legislativo tem permitido ao empresariado total liberdade nos seus ataques ao movimento operário. Não que tal fato não se dava nos dias de Mubarak, mas a ausência dos instrumentos do Estado para controlar o movimento dos trabalhadores introduziu uma dinâmica inteiramente nova na luta de classes. Se por um lado a burguesia bate com força, o proletariado, mesmo que com pautas pouco radicalizadas, tem tentado responder com igual vigor, muitas vezes chagando até mesmo a “deter” por dias os gerentes de produção.

Os petroleiros de Alexandria

Fundador do sindicato de sua companhia, Mohamad representa um dos setores mais radicalizados do movimento operário egípcio. Seu sindicato teve uma participação importante na onda de greves de setembro de 2011, que parou por volta de 700 mil trabalhadores. O movimento, entretanto, sofreu duras retaliações.

A direção do sindicato livre, segundo o militante, foi em boa parte demitida de seus empregos. Visando desmontar o novo sindicato, gerentes industriais, acompanhados por oficiais do governo, obrigaram aos operários filiados ao sindicato independente se desfiliaram da entidade sob ameaça de retaliações no trabalho. Junto a isto, um novo sindicato atrelado às empresas petroleiras (muitas delas multinacionais), foi fundado em Alexandria.

O surgimento de sindicatos no setor privado era algo inexistente até a queda de Mubarak. A abertura econômica e o processo de privatizações, lentamente iniciada nos anos 70 e acelerada durante os anos 2000, transformou radicalmente as relações de trabalho nacionais, cuja estrutura sindical dos anos 1960 não abrigava. A antiga lei que regia a organização dos trabalhadores na prática proibia a formação de sindicatos nas empresas particulares, onde os mais básicos direitos sociais eram negados.

Dentro do atual vácuo legislativo, as empresas estão rapidamente organizando sindicatos atrelados a elas para assim impedirem um possível avanço do sindicalismo independente. A maioria destas entidades repetem o modelo político dos sindicatos oficiais atrelados ao antigo regime, com funções semi-estatais acopladas à sua estrutura, como a de organizar a aposentadoria de seus filiados.

Não por acaso, o sindicato independente, com seus dirigentes demitidos, sua base obrigada a se desfiliar da entidade, e tendo que competir com uma instituição estatal que controla direitos básicos da cidadania, foi duramente enfraquecido.

A luta continua

Apesar dos desafios, Mohamad e seus companheiros petroleiros continuam firmes na luta. “Depois de criarmos os sindicatos de base nas fábricas e o sindicatos dos trabalhadores de Alexandria, agora estamos filiados à central sindical independente”, afirmava o militante, “junto com ela, estamos redigindo nossas contribuições para a nova legislação sindical”.

Além do sindicato, Mohamad também faz parte da “Juventude Revolucionária dos Trabalhadores do Petróleo”, algo um tanto quanto curioso, dada a idade avançada do militante. “Tenho mais de 50 anos, mais isto não importa” explicava com um sorriso no rosto “juventude é estado de espírito e não um período específico do tempo.” Entusiasmado, apontava no jornal do grupo o ícone dos jovens, o ativista Rafez Salama, de mais de noventa anos. “Ele participou de todas as guerras contra Israel, foi preso diversas vezes pela ditadura e mesmo aos noventa anos fez questão de ir todos os dias aos atos de rua contra Mubarak”, afirmava. Assim como os jovens que chamaram a greve geral, Mohamad defende a imediata retirada dos militares da política. “temos que completar nossa revolução, fortalecendo a luta da classe trabalhadora conseguiremos derrubar os remanescentes do regime”, acredita.

Questionado sobre a greve geral, de repente, indo no sentido inteiramente oposto de tudo que vinha dizendo, o sindicalista muda o tom: “Sou contra a greve. Não podemos espalhar desordem no país... Este tipo de iniciativa atrapalha a produção”. Retornando rapidamente ao tema de seu livro, com um palavreado que em boa parte reproduz o discurso do governo, o operário afirma à sua plateia de forma convencida “precisamos garantir o crescimento do Egito, a eficiência na indústria tem de ser nossa prioridade.”

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