sábado, 27 de agosto de 2011

Flagman - O novo herói do Egito

(revista caros amigos)


25/08/2011

Flagman - O novo herói do Egito

Por Aldo Sauda
Especial para Caros Amigos

Cairo (Egito) – Parecia a celebração de uma vitória em final de Copa do Mundo. O povo, jubilante nas ruas, acenava as suas bandeiras enquanto os carros que passavam buzinavam em ritmo de euforia. Enquanto fogos de artificio eram disparados a um ritmo impressionante, egípcios de diferentes correntes e concepções politico-ideológicas se abraçavam em frente a embaixada israelense gritando emocionados “povo egípcio, erga a sua cabeça”.

Para quem não estava acompanhando as mobilizações que desde sexta-feira a tarde tomaram as ruas em frente a embaixada de Israel, a cena parecia inteiramente esquizofrênica. Quinta-feira à noite, algumas horas antes do inicio de uma mobilização que se originou de forma quase que inteiramente espontânea, o exército israelense havia acabado de matar pelo menos 6 palestinos em Gaza. Além dos palestinos, somava-se, em um dos incidentes mais graves desde a assinatura do acordo de Paz de 1979 entre Israel e Egito, a morte de cinco policiais e um oficial do exército, todos egípcios. As mortes enfureceram a cidade do Cairo.

O ataque, segundo Tel Aviv, foi uma suposta resposta a uma ação de milicianos islâmicos que haviam acabado de atacar um ônibus, majoritariamente transportando soldados israelenses, de uma linha que circula entre as bases militares do sul do país e o balneário de Elat. O ataque, o primeiro de outras duas ações coordenadas, atingiu, além do ônibus, veículos civis e militares. O incidente gerou a morte de 8 pessoas, entre elas um oficial do exercito de Israel e um atirador de elite da polícia. Além dos israelenses, sete milicianos árabes envolvidos na operação também foram mortos pelo exército de Israel.

Logo após os confrontos com os guerrilheiros, Israel, em uma ação até agora bastante nebulosa, atacou seguidamente as forças armadas do Egito. Segundo os observadores da ONU na fronteira, o Estado sionista realizou uma operação militar que envolveu uma aparente invasão do território egípcio e um provável bombardeio que resultou na morte dos seis árabes. A ação, segundo Israel, teve como objetivo prender os milicianos que haviam atacado o estado israelense e se escondido no Senai. Além do ataque ao Egito, Israel também bombardeou Gaza pela parte da noite, gerando ainda mais mortes e destruição na empobrecida faixa de terra.

Além da humilhante incursão em território egípcio, o governo do Cairo foi acusado por Ehud Barak, atual ministro da defesa de Israel, de ser incapaz de controlar a península, exigindo assim uma ação mais energética por parte dos israelenses. A acusação de Barak não deixa de ter um certo fundo de verdade. Há meses a imprensa egípcia vem noticiando com frequência a perda, por parte do governo, do controle da situação na península. Radicais islâmicos que se opõem a junta militar tem realizado uma série de ataques a polícia egípcia no Senai, gerando a morte de diversos soldados e policiais.

O Senai, que antes do inicio do processo revolucionário de 25 de janeiro já era uma região tensa devido a delicada correlação de forcas entre islamistas, tribos beduínas e o governo, após a queda de Mubarak tornou-se o principal foco de ação dos extremistas islâmicos no país. No dia 29 de júlio, mais de 100 homens armados em motocicletas, hasteando bandeiras islâmicas, realizaram um ataque coordenado a uma delegacia policial em Arish, principal cidade do norte da península. O ataque gerou a morte de 6 pessoas, incluindo o delegado de plantão.

As tentativas de se reassumir o controle da região pelo governo central do Cairo, que por enquanto não tem dado muitos resultados positivos, vem ocorrendo em estrita parceria com Israel. O acordo de paz entre ambos os países estipula um número máximo de militares na região, fazendo com que os egípcios tenham de pedir licença a Tel Aviv para reforçar a segurança na península. O poder de veto israelense sobre operações do governo egípcio em seu próprio território, garantidos pelo acordo de Paz de Camp David, é um dos muitos elementos que tem, cada vez mais, sido questionado pelo povo.

Em busca do inimigo externo

O ataque por parte de Israel, segundo diversos analistas, teve enquanto objetivo central distrair a sua população dos crescentes problemas domésticos que o governo vem enfrentando. Desde o começo do verão, Israel tem passado por diversas mobilizações populares, centradas nos problemas de moradia e constante aumento do custo de vida. Históricamente, quando os temas sociais superam a questão da segurança doméstica e assumem a pauta central do cenário politico israelense, a direita sempre acaba perdendo as eleições para o campo politico mais à esquerda.

A juventude, que tem se mobilizado em Israel de forma abertamente inspirada nos eventos que ocorreram na praça Tahirr no começo do ano, chegou a mobilizar mais de 300 mil pessoas em um país de apenas 7 milhões de habitantes. O movimento, que apesar de evitar o tema da ocupação israelense em terras palestinas, tem, mesmo que de forma débil, feito algumas criticas ao orçamento militar israelense e a política de estado de incentivo aos assentamentos.

Os conflitos no sul de Israel na quinta-feira, porém, parece ter, pelo menos por enquanto, derrotado o movimento. O último ato, marcado para o sábado após os ataques, contou com a presença de apenas mil pessoas. No momento em que grupos de militantes de esquerda começaram a chamar palavras de ordem contra a ocupação israelense, os mesmos foram acusados de 'traidores' por outros manifestantes.

Se as ações militares de Israel distencionaram a luta de classes interna no pais, elas transferiram quase que inteiramente o problema para a junta militar egípcia, que agora começa a ter que lidar com aquilo que pode ser a fase anti-imperialista do processo revolucionário que ocorre no Egito.

O retorno às ruas

Assim que os eventos de quinta-feira se esclareceram para o público, pequenos grupos de egípcios começaram a protestar contra a presença da embaixada israelense em seu país. A mobilização originalmente não contou com os principais grupos e movimentos políticos nacionais. Elas temiam que devido ao jejum que ocorre durante todo o mês de Ramadã, qualquer tentativa de construir movimentos de massas seria fracassado, pois o cansaço físico iria se impor sobre os manifestantes. Ledo engano.

Por volta da uma da tarde da sexta feira, um pequeno agrupamento de 100 pessoas iniciava uma longa e intensa manifestação contra o Estado de Israel. Inicialmente composta por jovens islamistas, a rotatividade dos grupos que se faziam presente no ato durante a parte do dia revelava o caráter plural da juventude, que ao lado dos operários, derrubou o regime de Hosni Mubarak no dia 11 de fevereiro.

Os jovens, enfurecidos pelo ataque israelense, atiravam seus corpos repetidamente contra a barreira de metal de dois metros de altura que separava a embaixada da rua. Por mais de 5 horas, jovens de todas as ideologias politicas, dos liberais aos islamistas, passando por socialistas revolucionários e nacionalistas árabes, chutavam, socavam e se jogavam contra a parede.

A mera ideia de se realizar uma manifestação na frente da embaixada durante os anos Mubarak era inteiramente inimaginável. Após a revolução, porém, tudo mudou. No dia 15 de maio, quando dezenas de milhares de egípcios demonstraram a sua solidariedade à causa palestina em um ato duramente reprimido pela junta (que resultou em mais de 300 feridos e 180 presos), o governo decidiu adotar novas medidas de segurança, inclusive a construção do muro de metal, e outro menor, de concreto, para proteger o prédio.

Mesmo com uma pequena quantidade de manifestantes, a energia expressa pela juventude, além do barulho ensurdecedor emitido pelos choques com a barreira de metal, eram impressionantes. Algumas horas depois do inicio do protesto, o muro havia finalmente sido derrubado.

Atrás dele, além de outro muro de concreto, fileiras de soldados do exercito garantiam a segurança da embaixada. A presença dos militares, e não da odiada polícia egípcia, indicava uma possível mudança no comportamento das autoridades em relação a esta especifica manifestação. Durante os conflitos do último ato pró-Palestina, a polícia dispersou os manifestantes com rajadas de fuzil.

Com o por do sol e o fim do jejum do Ramadã, centenas de pessoas de todas as idades começaram a chegar a porta da embaixada, exigindo a expulsão do embaixador. Após avançar sobre a barreira de ferro, os manifestantes começaram a derrubar a segunda barreira de concreto. Foi ai que os militares começaram a se movimentar. Enquanto a segunda barreira era derrubada, dois tanques do exercito se dirigiram até os manifestantes. Sob o grito “vão ao Senai, vão ao Senai”, os manifestantes cercaram os tanques indicando claramente a disposição dos jovens para o confronto. Após alguns minutos de tensão, os tanques recuaram.

Mesmo depois da retirada dos veículos, o general Hamdy Badeen, integrante da junta que governa o pais, foi tentar acalmar a população. Assim como feito com os tanques, os jovens também cercaram o general, porém, foram muito mais diretos com o mesmo. “Você mandou os soldados nos expulsarem da Tahrir e mandou provocadores nos enfrentar na porta do tribunal de Mubarak” gritavam os manifestantes. Protegido por oficiais do exército, Badeen teve de ser rapidamente escoltado para longe da embaixada.

Uma vez derrubada a segunda barreira, os manifestantes egípcios ficam cara a cara com o prédio, separados unicamente por um cordão de soldados do exercito. Dirigindo palavras de ordem aos mesmos, após os soldados ficarem claramente tencionados eles foram rapidamente substituídos por oficiais do exército. Estes, inevitavelmente menos suscetíveis a pressão popular, se mantiveram firme na defesa de Israel.

A manifestação, que na noite de sexta-feira culminou em mais de 1.500 pessoas, acabou por não ser reprimida pela policia. O apoio a expulsão do embaixador, pauta central do movimento, possui o apoio de “99% dos egípcios”, afirmou o militante Mustafa Ismat, de 29 anos. “Conseguimos, novamente, construir unidade no movimento”, algo que segundo Mustafa não ocorria desde as manifestações na praça Tahrir.

O fortalecimento da pauta anti-imperialista no processo revolucionário é uma péssima notícia para a junta militar. A própria incapacidade dos militares de responderem minimamente a demanda do movimento indica o potencial de desgaste que tal tema pode gerar ao governo.

Logo após o incidente na fronteira, a imprensa oficial egípcia anunciou a retirada do seu embaixador de Tel Aviv, porém, no dia seguinte, a notícia foi negada pela chancelaria egípcia. Segundo diversos manifestantes, tal fato se deve a pressão exercida por Washington sobre o governo do General Tantawi.

Na noite seguinte, o que havia se iniciado como uma manifestação de 200 pessoas, tornou-se um ato público reunindo mais de 25.000 manifestantes. Contando com a presença das principais organizações políticas do país, os manifestantes iniciaram uma longa e bem humorada campanha para arrancar a bandeira israelense do topo do prédio.

O instrumento favorito para atacar a bandeira, fogos de artificio de diversos tipos, eram disparados sem parar em direção a embaixada. Enquanto alguns alvejavam a bandeira especificamente hasteada no topo do prédio, outras dezenas de bandeiras israelenses eram incendiadas ao longo da noite. Mesmo assim, o objetivo principal parecia quase impossível de ser atingido. Dada a dificuldade de se destruir a bandeira com os fogos de artificio, surgiu-se a ideia de tentar arranca-la com uma enorme pipa. Após algumas tentativas frustradas, a falta de vento acabou por suspender a nova tática.

latuffegitoFoi ai que um novo herói surgiu no cenário politico egípcio: Ahmed Shahat, de apenas 22 anos. Aproveitando-se da troca de guarda dos soldados que protegiam a embaixada, Shahat secretamente furou o bloqueio, e assim que estava ao lado do mais odiado prédio de Cairo, iniciou uma impressionante escalada até o topo da embaixada israelense.

Empurrado pelas massas, que de forma ensandecida gritavam em seu apoio, Shahat escalou os 13 andares do prédio, arrancou a bandeira israelense, e hastiou a egípcia em seu lugar. O povo, incrédulo com a escalada de seu novo herói, recebeu-lhe com tanta euforia que o mesmo teve de ser hospitalizado logo após sua escalda épica. A vitória acordou toda a cidade, que às duas da manhã, festejava como se o Egito houvesse finalmente expulso o odiado embaixador.

Batizado de Flagmen, o novo heroí do Egito logo virou sensação no twitter, rapidamente entrando no topo dos trending topics.

Por mais que a retirada da bandeira israelense tenha sido uma vitória essencialmente simbólica, ela testemunha, não só a vida do processo revolucionário de 25 de janeiro, como também o seu caráter necessariamente anti-imperialista. Um Egito verdadeiramente democrático, é, por excelência, um Egito pró-Palestina.

Caso a relação entre Israel e Egito não se transforme no futuro próximo, a junta corre um risco de comprar uma briga potencialmente invencível. O presente tencionamento não se dá mais com setores específicos da população, como vinha acontecendo desde a queda de Mubarak, mas com o todo da sociedade egípcia. No Cairo, o anti-imperialismo esta mais vivo do que nunca.

Aldo Cordeiro Saúda é formado em Relações Internacionais e faz pesquisa no Egito.

Nenhum comentário:

Postar um comentário